INTRODUÇÃO
Em 1999 criei uma lista de discussão na web, chamada FundBR. Meu objetivo era reunir um grupo de profissionais de captação de recursos para causas sociais e assim trocarmos idéias, angústias e alegrias. Naquela época eu e Célia Cruz havíamos sido convidados para elaborar um livro sobre o tema, a convite do Instituto Fonte. O livro foi lançado em 2000 em conjunto com outros seis livros para ONGs e a coleção, denominada Gestão e Sustentabilidade é, até hoje, referência para ONGs que querem profissionalizar sua gestão e precisam de dicas práticas, relacionadas à realidade brasileira.
Esse meu primeiro livro, (que tem o maior nome de livro que conheço: Captação De Diferentes Recursos Para Organizações sem fins lucrativos), foi minha entrada pela porta da frente no denominado terceiro setor brasileiro. Graças ao livro, tenho sido convidado para palestrar e ministrar cursos por todo o Brasil. Fiz as contas recentemente e passam de 6 mil pessoas que já assistiram minhas aulas e palestras. Nesses 10 anos foram tantas as novas experiências que senti a necessidade de escrever outro, mais intimista, mais conversador com você, leitor. Nesses 10 anos o setor se consolidou, ações de cidadania estão mais presentes, as pessoas se envolvem mais, as empresas têm dirigentes mais conscientes, os governos fazem mais parcerias, enfim, muitas e melhores causas cada vez mais são trabalhadas. Hoje são mais de 370 mil ONGs no Brasil. Hoje a internet viabiliza informações ricas para nós captadores (digo sempre que o Google é o grande parceiro do captador) e qualquer cidadão ou cidadã está, às vezes até inconscientemente, envolvido em alguma causa social. É um Brasil diferente, que requer um livro diferente.
Há também um lado ruim. Há muita corrupção, muito dinheiro desviado, muita ONG de fachada, muito político criando ONG para desviar recursos… Meu livro não vai dirigido a esse público. Espero humildemente contribuir para a extinção desse tipo de gente. Mas a batalha é árdua…
Mas voltemos à lista FundBR, onde tudo começou. Naquela época meu objetivo egoísta era o de obter, com as fontes, os captadores, algumas idéias novas para nosso livro. Eu e Célia havíamos dividido as funções, não só em relação aos capítulos, mas também na busca de referências internacionais. O livro foi o primeiro a tratar do assunto com uma visão brasileira. Queríamos ter esse mote, tanto nas experiências quanto nas questões de fundo. Queríamos saber como era a realidade de um captador de ONG no Brasil. Eu fui pesquisar nas fontes européias e a Célia nas fontes americanas. E ao compararmos realidades, faltava saber como isso se encaixava no dia a dia brasileiro. E então criei a lista. Começamos convidando uns 10 conhecidos e divulgamos em alguns lugares. E as pessoas foram chegando, inclusive muita gente que captava recursos para a área cultural.
Já nas primeiras conversas um tema reinou absoluto: o comissionamento. Existiam dois lados na lista. De um lado, os captadores de recursos para a área cultural, amparados pela legislação do Ministério da Cultura, defendiam sua atuação legítima na obtenção de patrocínios com empresas para projetos culturais incentivados. Do outro lado, nós, captadores de recursos para causas sociais, em geral trabalhando profissionalmente em ONGs, buscando o desenvolvimento institucional das entidades. A briga foi boa. Fomos atrás de referências internacionais (eu e Célia já estávamos fazendo isso para o livro) e encontramos em todos os países que havia uma consolidada profissionalização da captação de recursos para causas, códigos de conduta profissional. Esses códigos destacavam que não se deveria receber comissionamento por esse trabalho.
Meu caso pessoal reflete bem essa defesa. E preciso aqui fazer um parênteses nessa nossa conversa para explicar o por que. Eu havia saído da iniciativa privada no meio dos anos 90 e resolvi ir atuar na área cultural, principalmente pela janela de oportunidade que surgiu com o advento das leis de incentivo. Montei com outros sócios uma produtora de documentários e atuava em paralelo como captador de recursos para outros projetos, por comissão. Foram 2 anos onde ganhei muito dinheiro, mas também vi o setor cultural envolvido com projetos incentivados se deteriorar rapidamente. Nesses 2 anos encontrei o que há de mais mesquinho e podre na natureza humana: Contadores de empresas querendo um dinheiro por fora para liberar recursos, produtores culturais silenciando cúmplices, já que conseguiam uns trocados molhando a mão de terceiros, o ministério calado em relação a isso e apenas divulgando a parte boa: os números cada vez maiores sendo injetados para a cultura. E corretoras de valores entrando nesse mercado e oferecendo 30% para as empresas, em uma operação casada, legal, mas imoral, pois acarretava para o produtor ter que “esquentar” notas nos orçamentos de seus filmes. Enfim, uma imagem tosca que muito me incomodou, principalmente porque naquele período acabara de nascer minha filha Luísa. Aquele momento sublime do nascimento de uma vida não combinava com aquele ambiente sujo que eu estava vivendo. E pulei fora. Não sem antes incomodar meus sócios e outros parceiros, como se tivesse sido o traidor que saiu do esquema. O que traiu o acordo tácito da área cultural.
Os primeiros meses em casa foram de puro período sabático. Curti minha filha enquanto bolava um novo trabalho pra mim. Refleti que meu desejo de sair da iniciativa privada para entrar na área cultural era que eu queria fazer coisas com sentido. Trabalhar com as leis de incentivo foi um atalho que achei interessante no começo, mas que resultou numa radicalização do que me incomodava na área privada: dinheiro a qualquer custo, lucro como objetivo, benefícios pessoais ao invés de benefícios coletivos. Fiquei tão incomodado com essa minha experiência que radicalizei também, achando todos os agentes culturais corruptos e todo lucro uma indecência. Foram necessários quase 10 anos para o trauma arrefecer. Hoje sei que, como tudo na vida, existem os corruptos e os honestos, os bons e os maus, os espertos e os ingênuos. Aquela minha experiência na área cultural me fez conviver com os desonestos. Hoje sei que sim, há muita gente honesta na área e é com eles que tenho conversado.
Mas voltando novamente à lista, como eu estava com essa realidade de ter vivido o mundo cultural da maneira mais crua e dura (apesar de financeiramente boa), minha defesa pelo não comissionamento era radical. Eu acreditava, e acredito ainda, que esse formato gera uma espiral de ganância que se transforma em algo incontrolável. Ao mesmo tempo, quando decidi atuar na área social e não mais na área cultural, não havia motivo para querer igualar tudo em um único cesto. A área cultural já estava consolidada, a legislação permitia que o comissionamento ocorresse, os agentes culturais, coniventes, é verdade, já estavam habituados a esse formato, mas principalmente havia gente honesta querendo trabalhar com comissão nesse mercado, direito deles. Imagino que na lista estávamos falando com os honestos, bem intencionados, que não haviam ainda passado pela espiral financeira. O que percebemos na lista FundBR é que, ok, essa é a realidade na área cultural, mas não precisa ser na área social, que não tinha uma legislação sobre o tema captação (aliás, ainda não tem) mas existia uma espécie de código de conduta também tácito, principalmente de entidades que se inspiravam em entidades congêneres internacionais.
Quando percebemos isso e passamos a dialogar na lista as diferenças entre os dois setores, fomo atrás de códigos de ética internacionais e também exemplificamos a diferença entre uma doação e um negócio.
Quando você doa 100 telhas para o telhado de uma creche, não quer que 10 telhas fiquem com um intermediário. E se vão ficar, na próxima vez você vai querer doar diretamente pra creche. É uma doação.
Já na cultura, trata-se de um negócio como o de vender beterrabas. Eu posso contratar um vendedor que vai me vender essas beterrabas e posso pagar a ele o que quiser desde que ele me venda as beterrabas. É um negócio.
Claro que o social não são telhas nem a cultura é uma beterraba, mas o exagero da metáfora é para esclarecer e sabemos, você que me lê, eu e qualquer outro, que existem nuances e variações entre esses dois extremos que ilustrei. O que sim ficou claro pra mim e para muitos na lista é que chegava a hora de defender um código de ética para o setor social e friso: setor social, não lucrativo.
A lista tinha gerado então seu primeiro filhote: um grupo de pessoas que estaria trabalhando para construir um código de ética. Esse grupo rapidamente percebeu que para atuarmos conforme um código, poderíamos criar uma entidade profissional cujo ato de associar-se significava comprometer-se a seguir um código de conduta profissional. Criava-se então a ABCR.
A ABCR é um capítulo a parte deste livro, literalmente. Falo da ABCR no bojo do livro. Coincide que estou presidente desta entidade, depois de ser sócio-fundador e acompanhar à distância as primeiras duas gestões presididas por colegas também fundadores.
Meu distanciamento se deu por outras conjunturas dessa maravilhosa coisa chamada vida. Assim que Célia e eu lançamos o livro, em um período próximo à criação da ABCR, fui me aventurar, a convite da secretaria de gestão estratégica do governo Mario Covas, na seara governamental.
Passei a atuar como especialista informal em terceiro setor dentro do Palácio dos Bandeirantes. Várias das ações que construímos estão citadas neste livro. Mas nesta introdução queria só destacar que meu distanciamento da ABCR se deu por concreta impossibilidade de dedicação. Eu já me equilibrava entre trabalhar nos programas governamentais e nas horas vagas dar palestras e aulas pelo Brasil.
Foi só em 2007, quando decidi encerrar meu ciclo governamental (que antes imaginava que seria de no máximo 2 anos) que me senti capaz de dedicar-me à ABCR. Meu novo sabático (gosto tanto de fazer isso que ainda escreverei um livro a respeito) pós-governo me traria tempo para dedicar-me ao assunto captação, a fazer a ABCR decolar e a escrever este livro que você está lendo. O livro acabou demorando mais do que previ, era pra estar pronto em 2007… Mas aprendi na vida que tudo tem seu tempo certo e este livro está em suas mãos agora porque é o tempo certo, o tempo de encerramento de mais um ciclo.
O ciclo que se encerra, do meu ponto de vista, é a infância do setor de captação de recursos no Brasil. Somos adolescentes agora. Podemos dar saltos maiores, estamos nos deixando levar pelas novas tendências que o mundo conectado nos cria. Sou um otimista inveterado. Acredito que a captação de recursos no Brasil já faz, mas fará ainda muito mais, um efeito significativo no desenvolvimento das organizações da sociedade civil. Estamos vendo crescer várias defesas de causas, fico orgulhoso ao ver iniciativas florescendo, conscientes, profissionalizadas, mas sempre com o que chamo de B.O (brilho nos olhos).
O novo ciclo deve partir de um novo patamar, ainda que existam iniciativas em graus diferentes de desenvolvimento. E esse novo patamar a que me refiro é o de ONGs com seus departamentos de captação. Este livro é então para essas ONGs. Não importa o tamanho da ONG nem se o nome do departamento é esse ou outro. Pode chamar de mobilização de recursos, de desenvolvimento Institucional, de recursos financeiros, de comunicação e marketing, o que queiram. Este livro é pra entidades que já sabem que uma área assim é fundamental e por isso criaram seu departamento. Não estarei fazendo mais a defesa pra se ter um departamento, mas sim o que fazemos com ele.
Nota do autor: Se você chegou até aqui e percebeu que esse livro não é pra você, ainda está em tempo de trocar na livraria, ok? Você quase não o usou, está pouco amassado, tenho certeza que o livreiro vai entender. Troque por outro que fale sobre a importância da captação, existem vários hoje (inclusive o meu com Célia Cruz). Mas realmente este livro é para quem montou ou vai montar agora um departamento de captação para uma entidade que defende uma causa.
Aviso dado, vamos ao método. Fiquei meses pensando como poder ser útil e ao mesmo tempo fazer disso uma conversa. Nosso livro anterior continua sendo muito utilizado, muitos leitores que encontro em minhas palestras e cursos me dizem que é seu livro de cabeceira. Isso me deixa muito honrado e também sem graça. Pois como faço agora um novo livro que continue sendo de cabeceira?
A primeira idéia que tive para o livro foi teorizar o muito que aprendi dentro do governo: fazer de um limão uma limonada. Minha idéia era mostrar como fazemos com 200 mil reais algo que, se comprássemos, custaria um milhão. O livro ia se chamar “Quando 2 vira 5”. Esse tema já estava na minha cabeça desde 2006 e vários colegas de profissão me perguntavam sempre: “E o livro? Como anda?” Pois é. Andou pra mais coisas.
A segunda idéia que tive, complementar à primeira, era contar minha experiência nesses 10 anos de captador na área social (ou 15, se contarmos meu período de captação na cultura). Ia se chamar “Diário de um captador” Era como que o oposto da idéia inicial: Nenhuma teoria, só vivência, um diário, tipo blog. Percebi que essa idéia seria muito prazerosa pra mim mas talvez maçante para o leitor.
A terceira idéia é este livro. Acho que consegui aliar meus dois desejos anteriores em algo que seja útil e prazeroso. Como quero falar das rotinas de um captador e com isso ilustrar muito do que se deve fazer no contexto da realidade brasileira, eu inventei um dia comum de um captador em período de campanha de captação para sua entidade. No meio dessa trajetória, algumas pílulas muito úteis para o leitor, que poderá acessar as informações com facilidade já que no fim do livro você encontrará os temas bem definidos, com as páginas correspondentes.
Desta forma, como no primeiro livro, ele pode ser lido na sequência, como uma história (e espero agradá-lo nessa tarefa) como também como referência futura, como um novo livro de cabeceira. O “eu” da história não sou eu de fato em um dia específico, mas sou eu e conhecidos meus no decorrer desses anos todos, pinçando experiências que acredito úteis. Ficou complicado? Deixa eu explicar melhor: trata-se de uma ficção onde o narrador conta um dia comum dele como captador de uma ONG. Mas não é uma ficção pois já aconteceu. Entende? Não? Ah, vamos pra história!
E você deve estar se perguntando: “Oras, porque comprei o livro se ele está a disposição gratuitamente na web?” E eu te respondo: “Oras, você já leu algum livro na tela de seu computador? Ou mesmo imprimiu um livro em PDF? Nada é igual a ter um livro impresso nas mãos. Nada ainda. Por isso acredito que este mundo novo está no porvir.Hoje atuemos com um pé em cada porto. Isso é o prazer. Muito prazer!
Abraços do Estraviz