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3 – nove e meia

NOVE E MEIA

Chego mais cedo no escritório. A empresa do Antonio fica a poucos quarteirões da nossa ONG. Nosso departamento fica na parte administrativa. O espaço maior é evidentemente para as oficinas com os jovens. Entra-se por um corredor ou pelo próprio galpão. Eu costumo entrar pelo galpão porque gosto de ver a meninada fazendo atividades. Quando trago algum doador também prefiro fazer o trajeto pelo galpão. O uso do corredor serve para aquelas saídas no meio da noite ou até quando é melhor não atrapalhar determinadas atividades dos jovens.

A sala da captação está logo ao lado da secretária. Haviam me colocado em um espaço ruim logo que entrei, sem ventilação nem muita estrutura. Não que precisemos de luxo, sempre é bom certa coerência com a realidade da entidade. Mas disse para a fundadora que nesta sala seria ruim trazer algum potencial aliado. Isso foi suficiente para ela mesma trocar de sala comigo. Ela disse que usa pouco o espaço, o que é verdade. E quando usa, é para fazer reuniões. E para isso temos uma sala de reuniões bem aconchegante. Nossa fundadora é realmente alguém muito especial. Com isso, ganhamos uma sala com uma vista para o próprio galpão. Assim posso mostrar aos doadores as atividades que os jovens realizam enquanto negocio alguma contribuição. Montei uma mesa pequena de reunião na minha sala, justamente ao lado da janela para o galpão. E me posiciono sempre de costas para os meninos, para que o doador me veja e eu o veja enquanto olha para o galpão. Sempre funciona. Gosto de ver os olhos do doador brilharem.

Meu assistente estava concentrado no computador terminando alguns relatórios que iríamos discutir em seguida. Aproveitei para ligar meu notebook e anotei os acontecimentos da manhã na nossa base de dados. Primeiro conferi os dados existentes. Sim, Márcia continua sendo a secretária do Antonio. E obviamente Bárbara continua sendo sua filha. Esqueci de perguntar se o financeiro do Antonio continua sendo o Jair, mas isso pergunto agora no email que vou enviar a ele. No campo deste ano corrente digitei: “30 mil, categoria prata”. Os campos de contrapartidas já apareceram automaticamente: eventos, logo, convites. E respectivas datas de envio ou simples aviso para que não erremos com prazos. O campo “Parcelas” era outro que precisava perguntar no email.

Pílula base de dados

No email que preparei para o Antonio usei um modelo já existente, mas acrescentei dados pessoais, como faço sempre:

“Antonio, é sempre um prazer conversar com você. Espero que os chineses saiam logo da nossa vida!

Quero aqui agradecer, em meu nome e em nome de toda a comunidade “Jovens Globais”, sua contribuição de 30 mil reais para nossa campanha anual de arrecadação.

Sua empresa terá direito, como contrapartida a X Y e Z. Conte conosco caso queira alterar alguma desses itens.

Já temos seu logo para uso em nossos novos materiais gráficos e entregaremos em data oportuna os convites para nossos eventos.

Enviarei ao Jair do Departamento Financeiro o contrato contendo nosso acordo e definirei junto a ele as parcelas de pagamento. Se quiser seguir o mesmo modelo do ano passado, já passarei a ele os boletos para o pagamento em 10 parcelas. Somente me dê um OK quanto a isso.

Mais uma vez, MUITO OBRIGADO!

PS: Espero vê-lo hoje em nosso evento. Você é (SEMPRE!) nosso convidado especial”

Ao enviar o email percebi que havia outros 30 emails na caixa de entrada. Olhando por cima, nada parecia urgente. Fechei o notebook e falei pro meu assistente se podíamos começar nossa reunião.

Perguntei se poderia começar com algo fora da pauta, que era o convênio com o governo. Eu estava preocupado, pois estava chegando o momento de renovação. Apesar de semi automático, o secretário de assistência social estava prestes a sair do cargo e isso poderia acarretar alguma demora ou mesmo mudança de planos. Meu assistente quase não tratava do convênio. Era um assunto que ia direto para a gerência financeira todo mês, que por sua vez preparava a prestação de contas no formato que haviam solicitado. A equipe de governo, por sua vez, recebia todos os informes financeiros e em 5 dias úteis efetuava o pagamento.

Os primeiros meses foram confusos para nós, mas depois que aprendemos, funcionava como um relógio. De tempos em tempos uma assistente social vinha visitar-nos, tomava um café, perguntava dos meninos e saia aparentemente satisfeita. A tarefa do departamento de captação era outra: Enviar regularmente newsletters para as assistentes sociais e para o próprio secretário. Este por sua vez já havia sido visitado por mim e pela nossa fundadora duas vezes. A primeira, quando assumiu o cargo e a segunda, quando fomos solicitar que patrocinasse o ônibus. Eu já havia dito que seria muito difícil que ele fizesse isso, mas nossa fundadora, mais sábia e experiente, disse que isso era só uma desculpa para visitá-lo. E saímos dessa reunião com a garantia de que nossos processos ocorreriam sempre pontualmente. Era isso que nossa fundadora queria dele. E como todo bom político, sempre cumpriu o que combinou no fio do bigode para aquela senhora elegante que estava comigo. Era sua obrigação fazer isso, mas a política brasileira tem dessas coisas. Ainda vivemos um modelo tipo despachante. O político se sente fazendo um favor prometendo uma obrigação e nós ficamos satisfeitos ao sermos atendidos por ele quando nem precisaríamos fazer isso. Coisa das velhas gerações, que espero que mude para as próximas.

Eu já sabia que o secretário seria substituído por sua secretária adjunta. Ele ia se candidatar a deputado e precisava sair do cargo conforme a lei eleitoral. O fato de que quem iria assumir era sua adjunta era uma garantia de continuidade, mas eu queria mais informações. Quem era essa pessoa? Algum de nós tem ou teve contato com ela? Seria de bom tom agendar uma reunião com ela agora, antes de ocupar o cargo? Meu assistente ficou de obter essas informações e me passaria ainda hoje. E eu fiquei de conversar com nossa fundadora a respeito.

PILULA CONVÊNIO

Então a pauta da reunião era prospects e fundação alemã. Começamos pelos prospects, uma palavra gringa para “potenciais doadores”. Tenho o vício errado de usar termos em inglês quando eles são mais curtos que o termo em português. Vou me policiar para usar mais o termo “potenciais”.

Nosso plano para a busca de patrocínios com empresas estava assim:

Vamos atrás de 280 mil reais entre 12 empresas. Mais da metade já está conosco. Para algumas estamos solicitando mais do que no ano passado (como é o caso do Antonio) e outras temos receio de que não estarão mais conosco, pelo acompanhamento que fizemos no decorrer do ano. A busca está estruturada para visitarmos aproximadamente 30 empresas, todas vinculadas a algum contato. O primeiro ano foi mais difícil para mim. Não conhecia ninguém e os conselheiros ainda não estavam à vontade para indicar-me empresas de conhecidos seus. Hoje já temos uma boa relação com o conselho consultivo. É para eles que apresentamos o plano de captação assim que recebo a aprovação do gestor da entidade.

Fazemos duas reuniões por ano com eles. Uma em agosto, geralmente numa sexta pela manhã. Na reunião são apresentados os resultados dos primeiro semestre e um esboço do que pretendemos realizar no ano seguinte. É quando apresento o plano de captação e peço a eles sugestões e contatos. A outra reunião ocorre no fim do ano, no início de novembro. É uma reunião mais festiva, celebrando os resultados do ano. É quando o gestor apresenta o plano detalhado e operações para o ano seguinte e eu apresento os resultados da campanha, dando destaque para os novos apoiadores. Realizamos essa reunião horas antes de um evento anual, que realizamos no próprio galpão. Cercados de salgadinhos e alguma cerveja, apresento os novos apoiadores aos conselheiros presentes. Estabelecem-se laços e começam os vínculos com a entidade entre os novatos e os antigos. E vamos pra festa observar as apresentações dos jovens. Todos ansiosos, mas orgulhosos em estar ali. Os jovens, nervosos com a apresentação, os apoiadores contentes de serem co-autores de tudo aquilo.

[Pílula conselho consultivo]

Meu assistente me apresenta a lista atualizada de potenciais doadores:

Ouro:

1 cota garantida com o Banco Pastor

1 cota pendente entre 3 empresas: Jovial, Treia e Fistel

Prata:

1 cota garantida da Tramos

1 cota por confirmar da Sistar

2 cotas pendentes

Bronze:

2 cotas por confirmar com Deicra e CrossPlus

4 cotas pendentes

Tínhamos uma lista de outras 25 empresas indicadas por conselheiros ou amigos nossos. Cada empresa com sua respectiva informação de quem indicou e um pequeno resumo de sua situação financeira. Se cresceu o faturamento ou se ampliou o número de funcionários. Se saiu na mídia recentemente ou se algum executivo apareceu em alguma coluna social. Informações não maiores que duas linhas, mas primordiais para iniciarmos um diálogo após o começo de alguma reunião. Era informação para termos gravada na memória.

A busca de patrocínio com empresas tem muito de marketing. Mas aprendi que não por isso deve ser negociada com os departamentos de marketing. O envolvimento das empresas com doações envolve, ainda bem, os dirigentes. Nada contra os departamentos de marketing, mas gosto mais de reuniões com empresários que, antes de pensarem em market share e target, querem mudar o mundo.

As 25 empresas que falta visitarmos são desse tipo. Falaremos com decisores com comprovada atuação social. Avisei meu assistente para atualizar a lista, pois na reunião com o Antonio, da Jovial, perdemos a chance de uma cota ouro mas garantimos uma cota prata.

Ele já havia conseguido agendar reuniões com 10 das 25 empresas. Me disse também que com 5 dessas empresas ele não tem conseguido contato. Ou a secretária não retorna, ou o empresário não confirma, ou ambos.

Vejo, na lista dessas 5 empresas que quatro delas são indicações do nosso conselheiro novo. Imagino que ele, no afã de mostrar serviço na reunião, foi citando empresas sem de fato ter peso de decisão sobre elas. Deve ter citado alguns contatos distantes. Decido ligar pra ele imediatamente. Comento que estamos com dificuldades para agendar reuniões com as empresas indicadas e se ele ou sua secretária poderiam fazer esses agendamentos por nós. Poderia ser qualquer data e horário que nós nos adequaríamos. Percebi que ele ficou um pouco sem graça, mas abusei do fato de ser conselheiro novo e me mantive firme aguardando uma resposta positiva. Ele cedeu e concordou. Desliguei o telefone e disse ao meu assistente que essas quatro empresas são responsabilidade do conselheiro. Não tenho muita expectativa com essas empresas já que os empresários estão reticentes, mas o melhor é tirarmos de nossa lista de tarefas o trabalho de ficar ligando tantas vezes. O conselheiro que indicou que mostre serviço. E nós lhe mostraremos gratidão eterna.

Temos ainda 3 cotas por confirmar com apoiadores freqüentes. Guardo essas reuniões para o final da campanha. Mas decido enviar um email avisando-as que queremos agendar uma reunião em breve, mas que já estamos contando com seus apoios. Rabisco um rascunho no papel e peço que meu assistente envie depois, em meu nome.

Restam as outras empresas, além das agendadas. Fazemos mais um exercício de memória e criatividade para saber se novas empresas podem constar da lista. Meu assistente se lembra de ter lido sobre uma empresa de telecomunicações. Constava na matéria que eles iriam focar no público jovem. Peço que busque no Google mais informações, quais os responsáveis pela campanha de marketing e se algum de nossos apoiadores tem contatos com empresas de telecomunicações.

Antes era eu mesmo que fazia essas buscas. Adoro fazer isso. Sinto-me um espião cibernético. Antigamente, sem a web, não tínhamos muita informação sobre as empresas e os executivos. Hoje em dia são grandes as chances de procurar o nome de alguém com quem você vai se encontrar em uma reunião e o Google detalhar que a pessoa fez tal curso, esteve em tal evento, disse tal coisa. São informações ricas para conhecer o outro lado do balcão e em alguns casos comentar no início da reunião.

Resolvemos passar para o outro item da pauta: a Fundação Alemã.

Estamos muito entusiasmados com esse novo projeto, que aparentemente garantirá a compra e reforma do novo ônibus. É uma negociação que começou faz um ano e está nos últimos detalhes. Estamos arriscando já considerá-la como certa para o ano que vem, tendo em vista que os próprios alemães já nos declararam isso. O risco é porque não temos nada assinado ainda a não ser cartas de intenção.

Eles nos declararam que após nosso detalhamento orçamentário já entregue, estão agora aguardando a reunião do conselho deliberativo deles, que ocorrerá em 20 dias. Na nossa última conversa por telefone na semana passada, perguntei se tem algo a mais que podemos fazer e nos disseram que esperemos. O sinal de alarme tocou quando meu assistente me avisou que haviam pedido alterações no orçamento.

Na reunião ele me explica que se trata de pequenos detalhes, o que me tranqüilizou muito. E pediram que quanto ao maior custo, o da reforma do ônibus, sejam entregues três orçamentos diferentes. Isso nos dará um pouco mais de trabalho mas nada grave, pois temos o prazo de uma semana, ainda entregaremos isso a tempo da reunião de decisão dos alemães.

Enquanto meu assistente fica anotando no computador as alterações que preparamos, fico lembrando como essa relação com a Fundação começou. Eu ainda trabalhava sozinho e estava pesquisando na web fontes internacionais que poderiam servir a nossa causa. Encontrei mais de 10 fundações que aparentemente combinavam seu foco com o nosso. Eram três americanas, uma canadense, três alemãs, uma japonesa e dois fundos europeus.

Na época ainda não tínhamos a idéia do ônibus. A fundadora e eu fizemos umas duas reuniões onde apresentei as possibilidades e ela ficou de bolar algum projeto especial. Os fundos europeus foram rapidamente descartados. Precisaríamos ter uma ONG européia parceira e não tínhamos. Deixamos a idéia na gaveta para o futuro, quando tivermos alguma ONG amiga.

A fundadora trouxe a idéia do ônibus, muito em função da experiência com os jovens em liberdade assistida e nossa percepção de que a ONG tem que ir até onde os jovens estão. Eu e o gestor achamos a idéia ótima. Ele ficou encarregado de começar a buscar orçamentos e eu fui atrás das fontes internacionais. Descartei outras fundações que não financiavam compra de equipamentos e ficamos entre a fundação alemã, que prioritariamente financiava compra de equipamentos e outra fundação americana, que recebia propostas inovadoras que envolvessem mobilidade urbana.

Ambas tinham prazos similares de entrega de formulários de solicitação. A fundação alemã colocava no seu site um telefone. Pra mim era uma deixa, e liguei. Fui atendido por uma alemã muito simpática que se esforçava em falar em português comigo, misturado com castelhano. Pedi desculpas por estar ligando em um período fora da apresentação de propostas, mas é que eu tinha algumas dúvidas e precisava de um conselho. Esse pedido era inspirado pela dica que um grande mestre e amigo meu me disse certa vez: “Se você quiser receber dinheiro, peça conselhos. Se pedir dinheiro, só receberá conselhos.”

A alemã, além de ouvir-me atentamente, interessou-se muito pelo projeto do ônibus. Disse-me também que um membro da fundação estaria no Brasil no mês seguinte e perguntei o nome e se poderíamos contatá-lo para convidá-lo a visitar nossa entidade.

Ele veio, gostou do que viu, recebeu uma presente da fundadora e uma homenagem a ele feita pelos jovens cantando samba mixado com hip-hop. Ao deixá-lo no hotel, depois de um jantar de comida brasileira e umas 3 caipirinhas, pude ouvi-lo cantarolar o samba dos meninos enquanto ia em direção ao elevador. Estava feito.

Passaram-se meses, trocamos muitos emails e telefonemas. Até desistimos da fundação americana quando vimos o grau de comprometimento dos alemães conosco.

Volto sobressaltado à reunião com meu assistente, depois desse flashback. Vi que estávamos agora nos passos finais da negociação com os alemães. Era uma deliciosa vitória a ser comemorada. Não via a hora de assinar com eles e vermos o sonho do ônibus ser concretizado.

Encerramos a reunião e voltamos cada um para sua respectiva mesa. Ainda tenho tempo de responder alguns emails antes de encontrar- me com Dona Josefina, lá no centro.

PILULA FONTES INTERNACIONAIS