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São os indivíduos

HK people

São os indivíduos que financiam as organizações da sociedade civil. E vamos explicar detalhadamente isso, agora.

Escrito por João Paulo Vergueiro e Marcelo Estraviz

Essa afirmação, surpreendente para muitos aqui no Brasil, foi inicialmente comprovada na edição 2012, e agora confirmada na versão 2014, da pesquisa TIC Organizações Sem Fins Lucrativos.

A conclusão da pesquisa é de que 53% das organizações brasileiras recebem doação voluntária de pessoas físicas. O resultado é fundamentalmente positivo pois esse é o modelo no mundo, e agora o observamos também no Brasil.

Como vamos ver mais adiante, nos Estados Unidos, país em que talvez o Terceiro Setor seja o mais desenvolvido do mundo, os indivíduos respondem por 70% do financiamento das organizações, e na Inglaterra não fica muito longe disso, assim como em outros países.

Com a pesquisa TIC, finalmente temos fundamentos para concluir que o Brasil não está muito distante dos países desenvolvidos e democráticos, quando falamos em financiamento da sociedade civil, ainda que até hoje não tivéssemos instrumentos para comprovar isso. A pesquisa TIC muda esse cenário.

E, para aqueles que atuam com captação de recursos para organizações da sociedade civil, o resultado da TIC é ainda mais promissor, pois reforça algo que é defendido há muito tempo no país, e que já é realidade no resto do mundo desenvolvido e democrático: é a sociedade civil que financia as suas próprias organizações.

No entanto, até hoje, muitos dos atores que fazem parte do Terceiro Setor sempre acreditaram que nossas organizações eram majoritariamente sustentadas por empresas ou pelos governos, em suas várias instâncias, o que agora se comprovou falso.

Neste texto, vamos entender um pouco desse cenário, conhecendo as realidades mundiais e a brasileira, e discutindo o resultado da pergunta “Origem do Recurso das Organizações da pesquisa TIC”.

 

O financiamento da sociedade civil no Mundo

Os Estados Unidos são o país onde o modelo de financiamento da sociedade civil é mais consolidado e, depois de tanto tempo das organizações americanas pedindo doações para os indivíduos, é onde essa prática também mais se desenvolveu.

Por lá, no ano de 2013, e em todo o país, foram doados 335 bilhões de dólares para as organizações da sociedade civil, mais de 835 bilhões de reais (a considerar o câmbio do início de 2015).

 

Destes 835 bilhões, 72% foram doados por indivíduos, que acreditam nas causas das organizações e fazem transferências voluntárias de recursos financeiros, seja de forma recorrente, todos os meses, ou pontualmente.

Além dos 72% doados diretamente, mais 8% foram doados a partir de legados, que é o patrimônio deixado em testamentos por indivíduos que faleceram no ano de 2013.

Com isso, portanto, temos 80% de tudo o que foi doado para organizações da sociedade civil dos Estados Unidos, em 2013, tendo origem em indivíduos, um resultado bastante considerável.

Essa mesma pesquisa, realizada nos EUA há mais de 50 anos, também mostra que o restante do recurso recebido pelas organizações tem origem em outras ONGs – as Fundações (15%), e empresas (5%).[1]

Na Inglaterra, uma das economias mais desenvolvidas da Europa, o padrão não é muito diferente. A última pesquisa conhecida sobre o país, divulgada em 2013 e realizada pela Charities Aid Foundation (CAF) e pelo National Council for Voluntary Organisations (NCVO), indicou que o total doado pelos indivíduos chegou a quase 10 bilhões de libras, o que supera 40 bilhões de reais quando utilizamos o câmbio de janeiro de 2015.

Uma outra pesquisa, realizada pela organização Directory of Social Change (DSC), apontou que, de tudo que uma organização da sociedade civil britânica tem de financiamento, apenas 2% é originário de doações realizadas por empresas, um percentual ainda menor que o verificado na pesquisa sobre as organizações americanas.

 

O financiamento das organizações no brasil

Não existem pesquisas consolidadas sobre o quanto é doado no Brasil, e qual a origem das doações.

O país, apesar da existência secular das organizações das sociedades civis (as primeiras Santas Casas surgiram logo após o descobrimento), não dispõe de pesquisas que quantifiquem de onde vêm o recurso que é doado para as 303 mil organizações do país. Ou melhor, pesquisas existem, mas elas são sempre segmentadas, estudam uma ou outra fonte de financiamento, mas não se analisam as diversas fontes, como se fez na atual pesquisa TIC.

Por exemplo, a pesquisa “Doadores no Brasil”, de 2011, resultado de um trabalho desenvolvido pela empresa RGARBER com a organização ChildFund Brasil, apontou a existência de 17 milhões de doadores recorrentes no país, que contribuíam com uma média de 25 reais por mês.

Nesta pesquisa, estamos tratando de doadores individuais, e o valor total doado no país em 2010, para organizações da sociedade civil, chegava a cinco bilhões e quinhentos milhões de reais.

Já nas doações corporativas, aquelas realizadas por empresas com objetivo de financiar projetos ou a operação das organizações da sociedade civil, o Censo GIFE 2012 trouxe um resultado muito mais modesto: apenas 26% das grandes fundações e instituições corporativas e familiares realizam doações para organizações da sociedade civil. De um total que chega a 2 bilhões e 200 mil reais, esse percentual significa pouco menos de 600 milhões de reais por um ano, um total muito pequeno.

Ainda assim, nenhuma das duas pesquisas podem ser entendidas como definitivas: o fato é que no Brasil não há séries históricas e completas sobre quanto é doado para as organizações da sociedade civil, apenas alguns indicativos, que nos ajudam a entender o cenário, mas não nos proporcionam ver o todo.

 

A pesquisa

A pesquisa TIC Organizações sem fins lucrativos 2014 é, portanto, um marco. Primeiro porque ela resolve um impasse no que se refere às pesquisas brasileiras envolvendo terceiro setor: há pouca série histórica, há muito descontinuísmo.

Segundo porque reflete finalmente o que os profissionais do campo da captação já intuíam: quem financia prioritariamente a massa das organizações brasileiras é o indíviduo. Nem de longe são as empresas (que estão em quinto lugar entre as fontes de recursos pesquisadas) nem o governo federal, que está em oitavo na lista.

Para um conjunto pequeno de organizações urbanas, focadas em direitos, politizadas e bastante estruturadas, o financiamento internacional sempre foi a principal fonte. Já passou de uma década onde o que se fala é sobre a crise de financiamento que estas vivem, já que a cooperação internacional tem migrado (sensatamente) para outros países mais necessitados.

Se somos uma Belindia, como algum economista alguma vez disse, essa mistura entre Bélgica e India, parece que a cooperação internacional deixou de nos ver como India e passou a nos ver como Bélgica.

Mas o que a pesquisa aqui demonstra é que os chamados organismos internacionais não representam hoje mais de 2% do financiamento do setor. Infelizmente não temos dados históricos para comparar se esse número foi muito maior nas décadas de 80 ou 90. Provavelmente foram maiores que hoje, mas não deviam superar os atuais quase 50% do que doam os indivíduos para as organizações. A continuidade dos levantamentos a cada dois anos deve provavelmente trazer o que ocorre em outros países: há oscilações, há aumentos e diminuições de participações de empresas e governos, de acordo com as ondas econômicas, intervencionismos e inclusive as modas. O que não muda é o envolvimento do cidadão comum no processo.

Mas não estamos aqui para falar de previsões e sim de dados. Vamos a eles novamente.

O primeiro lugar nas origens de recursos está nas doações voluntárias de pessoas físicas. O que nos termos técnicos da captação de recursos denominamos de doações avulsas. Isso é aquele cidadão que foi chamado a doar por primeira vez e algumas vezes acaba sendo a única vez, porque a própria organização não tem estrutura ou capacidade de fidelizá-lo com outras doações.

Em geral essas organizações são aquelas que trabalham solicitando como uma eterna primeira vez, mesmo quando por vezes o doador é o mesmo. Basta imaginar uma igreja que todo domingo pede para que circule a sacolinha. O doador que coloca ali suas moedas ou notas pode já ter colocado dinheiro na missa do domingo passado, mas para aquela congregação o entendimento é de que se trata de uma doação voluntária e portanto nova, a cada vez que o fiel contribui. Organizações mais preparadas tecnologicamente ou mesmo com uma certa gestão mais profissional percebem formas de fidelizar o doador.

Aí entra o segundo colocado na mesma pesquisa, as mensalidades e anuidades pagas. Também em uma faixa próxima a 50% dos entrevistados, esse mecanismo está presente nas organizações como uma opção que garante muito provavelmente o custeio das atividades cotidianas. São ONGs com uma característica associativista, baseada em recursos provenientes de defensores da causa, e algumas vezes até sócios mantenedores por interesses de pertencimento, como os Rotarys ou Lyons.

O que chamamos em captação de doações recorrentes é na verdade a forma mais profissionalizada de garantir a sobrevivência das organizações que defendem causas.

Um Brasil mais estruturado no seu terceiro setor teria esta origem (as doações recorrentes, ou como denominado na pesquisa, as mensalidades e anuidades) como a principal fonte de ingresso. Pois isso representa uma cidadania sendo exercida em sua plenitude: cidadãos que não só conhecem seus direitos e deveres como selecionam as causas que defendem, continuamente, de forma transparente e associativa.

As pesquisas anteriores já citadas, tenderam, até por falta de dados, a destacar a presença da iniciativa privada no financiamento do terceiro setor brasileiro. Isso não foi aleatório. São estas empresas que tem maiores condições de divulgar seus próprios feitos. Suas assessorias de imprensa e seus balanços anuais mostram que fazem filantropia e investimento social privado.

Já a Dona Maria e o seu João, com seus centavos, não tem como divulgar seus atos, nem pretendem fazê-lo. Acontece que são 17 milhões de donas Marias doando centavos, como mostra a pesquisa da ChildFund. Se formos analizar as possibilidades de crescimento de recursos entre as diversas fontes de financiamento, a única frente capaz de dobrar seu tamanho (e continuar crescendo) em pouco tempo é o conjunto de indivíduos.

As empresas tem como foco, o lucro. Não há no horizonte de suas discussões recentes nenhum sinal de ampliação de seus investimentos sociais. Nas últimas décadas o valor de suas contribuições oscilou muito pouco, e em geral para baixo em períodos de crise. Uma pesquisa na Austrália, analisando os investimentos das empresas na área social nos últimos 30 anos mostrou que o valor atualizado se manteve.

No Brasil, o único número que mostra crescimento efetivo é o dos recursos incentivados. As empresas doam e patrocinam muito mais do que nos anos 80, quando não havia a Lei Rouanet, a lei de incentivo mais conhecida, focada em cultura.

Mas a pergunta é: quando a lei acabar, continuarão doando? Terão aprendido a importância de investir na cultura ou pararão de fazer porque não existe mais o incentivo? Na Austrália essa pergunta foi respondida com clareza: as empresas param de doar quando não há mais o incentivo, portanto os governos pararam de oferecer incentivos já que quem estava pagando a conta no final eram eles, os governos.

Falando em governos, também não se vê no futuro próximo um aumento significativo, que chegue a aumentar 50%, muito menos a dobrar de tamanho. A pesquisa mostra que o governo municipal é uma frente importante de recursos, o que se vê como uma política acertada desde a constituição de 88, com a ampliação da municipalização das frentes sociais (saúde, educação, etc.). As aproximadamente 26% de ONGs que se beneficiam de convênios municipais (terceiro colocado, logo depois das duas categorias de doações de indivíduos) são aquele terceiro setor quase estatal ou fornecedor do estado. As creches conveniadas, as unidades de saúde cuja gestão são das santas casas ou outros hospitais filantrópicos

Em um país mais capitalista como os EUA, estas seriam simplesmente fornecedores, talvez até mesmo empresas. Em países cuja tendência é mais focada no Welfare State, na Europa Ocidental, estas organizações não existiriam, seriam Estado puro. Fazemos essa diferença porque em geral no Brasil são organizações cujo financiamento é prioritariamente estatal e uma parcela pequena provem de iniciativas isoladas como rifas, bazares e pequenas atividades de arrecadação. Não há exatamente uma causa a se defender, talvez, no máximo, uma certa territorialidade. Mas enquanto estas não se posicionarem como organizações do terceiro setor, cuja força está em seu associativismo, perderão para uma posição de reféns para o poder local. Neste caso, a nosso ver, melhor seria assumirem o papel de fornecedores e pronto, sem representatividade. Mas aí entrariamos numa discussão ideológica que não cabe aqui neste paper.

Voltemos ao tema dos indivíduos, o que nos fez querer escrever este artigo: A situação das organizações brasileiras está muito mais para um Greenpeace, que arrecada somente com indivíduos, do que alguma organização, que arrecada com empresas. Estamos muito mais próximos de um Médicos Sem Fronteiras (MSF), que tem mais de 170 mil doadores mensais, do que uma organização de saúde que necessita de recursos de governo. E falando em MSF, somos hoje muito mais um país exportador de doações (já que os recursos dos doadores dos Médicos sem Fronteiras vão atualmente para países na Africa) do que importadores de doações, como éramos faz 30 anos e a cooperação internacional nos via (e éramos) de terceiro mundo.

É por isso que saudamos a iniciativa do CETIC para que se mantenham estas e novas perguntas para o setor.

Cada vez mais interpretando os caminhos que percorrem essas organizações do Brasil nos mundos da tecnologia disponível. Como está o envolvimento dos doadores nas páginas eletrônicas de doação destas organizações? Como se ampliam as captações das entidades através de sua presença e pedidos nas redes sociais? Se hoje 1 a cada 4 organizações fazem pedidos de captação nas redes onde estão, quais esses resultados e como eles estão se comportando em comparação aos mecanismos tradicionais de doação?

Falta portanto que sigamos pesquisando as novas sacolinhas cada vez mais virtuais das organizações. Esse passar o chapéu que hoje se faz com gateways de pagamento. Caminhando a passos largos para os próximos 10 bilhões de reais anuais da força dos brasileiros comuns, doadores ocultos dentro e fora da web.

 

(Artigo escrito para a publicação da pesquisa  TIC ORGANIZAÇÕES SEM FINS LUCRATIVOS 2014 realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação CETIC.BR)

Link para a pesquisa:

TIC Organizações sem Fins Lucrativos – 2014

 

Link para o dado específico, estudado neste artigo:

D6 – PROPORÇÃO DE ORGANIZAÇÕES POR FONTE DE RECURSOS

 

Bibliografia

Censo GIFE 2012

Giving USA 2014

Company Giving in the UK – DSC Almanac: 2013

Pesquisa Doação no Brasil 2011 – ChildFund Brasil e RGARBER

UK Giving 2012 – Charities Aid Foundation (CAF) e National Council for Voluntary Organisation (NCVO)

 

Autores

João Paulo Vergueiro, Presidente da ABCR – Associação Brasileira de Captadores de Recursos e professor assistente na FECAP – Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado.

Marcelo Estraviz Rodrigues, Presidente do Instituto Doar, fundador e ex-presidente da ABCR – Associação Brasileira de Captadores de Recursos.

[1] Não se considera recurso publico como doação, nos Estados Unidos e nos demais países, por se tratar, conceitualmente falando, de transferência de renda realizada pelo governo.

 

Ilustração: People, Hudesa Kananow http://www.hudesakaganow.com/