9 OITO DA NOITE
Grande noite. Todos a postos. Desta vez fiz diferente, deixei as organizadoras mais a vontade, não me envolvi demais, cheguei quase como mais um convidado, um pouco para sentir o ambiente, um pouco porque é importante delegar algumas tarefas.
O salão está lindo, as pessoas começam a chegar e antes de sentarem nas mesas, passam pelo stand. Dona Lucinda e dona Mirtes, as voluntárias organizadoras, estão radiantes, parecem duas debutantes. Dona presidenta está maravilhosa circulando entre os convidados. Camila, minha assistente, tem aquele sorriso de juventude, um pouco aflita, mas animada. Tudo corre bem.
O evento já arrecadou bastante dinheiro com a venda das entradas. Cuidamos para que houvesse menos mesas do que ingressos vendidos, já que vários pagam mas não aparecem. E mesa vazia é ruim em evento. Temos mesas adicionais que podem ser montadas rapidamente. Estão nesse momento montando duas logo atrás da minha. Casa cheia.
As pessoas estão todas sentadas, é hora de uma apresentação curta. A fundadora do “Jovens Globais” faz uma fala rápida, um convite à celebração. Ela já faz isso faz algum tempo, sabe que não é o momento de pedir nada, nem mostrar dificuldades. Ao contrário, é o momento de demonstrar sucesso, desenvolvimento, compartilhar alegria.
Participei uma vez de um jantar onde os gestores, enquanto comíamos, falavam das agruras de manter a associação. Foi péssimo. Não combina. Devemos entender que é da natureza humana aliar-se a projetos de sucesso. Quem diz o contrário é que não conhece a natureza humana. Já ouvi pessoas dizerem que nossa entidade estava bem, que ela preferia ajudar quem de fato precisava. Uma mentira deslavada. Esses não ajudam ninguém, dizem isso só como desculpa. Uma entidade pode ser humilde, “pobre mas limpinha” como digo, mas tem a dignidade de mostrar seu sucesso e suas realizações.
As pessoas quando doam para alguém muito necessitado, não o fazem por vínculo, mas sim para tirar o problema da frente. É assim nos semáforos. Quando você doa para uma criança, quer na verdade que ela desapareça da sua frente. É um ciclo vicioso. Quanto mais você faz, mais ela estará ali, pois onde há gente dando esmola, há crianças pedindo. Se você quisesse de fato resolver o problema daquela criança, estacionaria o carro, conversaria com ela, tentaria que ela fosse para alguma instituição no bairro dela… Isso é a ajuda real que ela precisa, mas na pressa, e para que ela suma de sua frente, você dá a esmola.
Outras pessoas acabam se envolvendo em ações sociais somente por impulso. Nada contra, é só mais um perfil de doador para trabalharmos. Mas há que se saber que os que mais nos interessam são aqueles que estarão conosco de forma mais freqüente. São esses que buscamos, pois nos garantem recursos constantes. Trabalhamos pela cidadania ativa.
Neste jantar temos gente de vários tipos. Os freqüentes, que além de serem doadores constantes, se alegram em participar desses eventos. Os convidados, que vem em geral junto com os freqüentes. E os que gostam mesmo de um bom jantar, que vieram porque ficaram sabendo através de algum colaborador.
Não há porque considerá-los todos iguais. Nem há porque desvalorizar os que se interessam somente pela comida. Todos estão aqui, pagaram por estar aqui, e devemos recebê-los carinhosamente. Vários sairão daqui animados a ajudar mais, ou ajudar pela primeira vez. Outros sairão felizes por terem participado de um evento bacana e é só. Todos tem o direito de não se envolverem mais do que se envolveram. Tem gestor de entidade que faz um discurso da obrigação social, como se devêssemos nos sentir culpados. Nada mais equivocado. Hoje é dia de festa. Cumpra-se.
No meio do jantar, Camila sobe ao palco e comenta da surpresa que He em algumas cadeiras. É um momento divertido. Pede que subam todos ao pequeno paco para que contem em poucas palavras seu envolvimento com a organização. Todos estão sorridentes e sobem alegremente.
A primeira a falar é uma senhora que diz que não conhecia a entidade antes, mas que está encantada com tudo e que promete ajudar. Além de gerarmos uma nova doadora a partir disso, a fala dela deve com certeza estimular outras pessoas presentes. E a fala dela é mais forte que qualquer discurso, porque é original, é real, é uma história de vida.
Outros falam também, alguns já doadores, outros não. Tudo é leve e agradável. De repente um senhor de não mais do que cinquenta anos começa a falar e percebe-se que está emocionado. Conta que ele, quando jovem, participou como usuário de uma organização similar em sua cidade. Era de família humilde e seus pais haviam morrido, vivia com a avó. A fala dele comove a todos, vejo algumas lágrimas escorrerem na mesa ao lado. Aquilo tem a força da verdade, nada é mais legítimo que uma história de vida. Jamais conseguiríamos algo assim, nem que combinássemos, nem que passássemos um filme. É o que digo: basta com dar espaço e oportunidade para a sorte, que ela virá. Foi muita sorte termos a fala dele nesta noite, mas preparamos o terreno para que essa sorte surgisse entende?
Todos descem do palco, continua o jantar, já na sobremesa. É o momento onde aproveito para cumprimentar alguns que ainda não falei no decorrer do evento. Sento-me com um dos conselheiros e pergunto se pode subir ao palco na hora do café, para apresentar alguns meninos que tocarão duas versões de músicas contemporâneas, misturando jazz e samba. “Ficou maravilhoso”, comento a ele. Ele se surpreende, primeiro nega, mas sei que gosta de um palco, já previa que aceitaria.
Na verdade é uma surpresa que faremos a ele. Por isso convido-o em cima da hora. Não tinha certeza que viria, e queria homenageá-lo pelo seu envolvimento com a instituição e com os jovens. O prêmio é algo simbólico. Um boné com seu nome gravado, pra ele usar ao contrário, como os meninos.
Chega a hora da apresentação e ele sobe ao palco. Conta rapidamente sobre sua participação, algo meio formal, como previa, mas que alcança aos mais desconfiados e pragmáticos. Como bom executivo, fala de números e resultados, e atinge com isso os que gostam desse discurso. Primeira parte do objetivo cumprida, vamos ver como ele se sai na segunda parte.
Ao chamar os jovens, todos chegam, ficam ao seu redor e o mais alto, já preparado, faz uma fala curta em nome do homenageado. Entrega-lhe o boné, ele o veste, coloca-o pra trás e fala ao microfone novamente. Começa com a realidade: “Eu não sabia de nada disso!” Olha pra mim com cara de bravo e feliz. Começa a falar e pára. Sabemos todos, nesses dois segundos de silêncio, que ele agora se emocionou de fato. E era o que queríamos. As vezes eu me acho meio maquiavélico do bem. Mas são bons truques, trata-se de encantar as pessoas. Vejo a mesa ao lado novamente com duas moças enxugando as lágrimas. Os jovens no palco começam a apresentação e o conselheiro desce todo animado, com o boné pra trás com seu nome estampado. Perdeu 30 anos de idade, parece um menino empolgado. É um evento especial este.
O show é curto, não é hora para ficarmos assistindo algo longo, por melhor que seja. E os rapazes tocam as duas melhores músicas de um grande conjunto de sons que sabem fazer e que ensaiam semanalmente. Essas duas músicas foram muito bem escolhidas. Estão impecáveis, músicos perfeitos, não há espaço pra improviso ou erros. São artistas plenos.
Já assisti muita coisa ruim nesses anos de terceiro setor. Aplaudimos por pena. Vozes desafinadas, batuques mal arranjados. Ninguém merece. Se sua instituição tem um grupo assim, guarde-o para apresentações menores, em espaços diferentes. É como aqueles artesanatos feios. Não há porque valorizá-los a não ser pelo efeito emotivo que carregam. Os desenhos da minha filha com 4 anos eu guardo pra mim, acho-os lindos, mas só eu acho. Não tenho porque expô-los como se fossem uma obra de arte. Mas se há algo que você e fato considera uma obra de arte, se mais gente já te disse isso, pois reserve essa obra, guarde-a para esses momentos especiais. Era o caso dessas duas músicas dos garotos. Eram obras de arte. Estavam completamente integradas ao resto do evento.
Os meninos foram super aplaudidos. Alguns mais exagerados, ficaram de pé, como fazemos com as obras primas, e pediram bis. Novamente subiu ao palco nossa fundadora, que encerrou o jantar não sem antes, de forma bem sutil, comentar do nosso stand, onde havia outras canecas, camisetas e agendas para os que não ganharam no sorteio, e onde as pessoas poderiam se inscrever para receber mais informações ou assinar o compromisso de apoiadores. Encerrou sua fala com um sincero agradecimento a todos os presentes e foi muito aplaudida.
As pessoas começaram a levantar-se e fui ao stand ver se precisavam de ajuda. Era a hora onde as pessoas buscavam comprar algo ou mesmo se inscrever como doadoras. Não poderíamos desperdiçar esse momento e deixá-las esperando. Já havia deixado duas mesas ao lado do stand, para que as pessoas preenchessem seus formulários. Criamos formulários curtos, contendo basicamente nome email e celular, para não perdermos tempo nem que as pessoas pudessem desistir. Também tínhamos a disposição várias canetas para aqueles que não tinham. No meio da aglomeração, peguei um punhado de formulários e convidei aos que estavam próximos que se sentassem nas mesas para preencherem tranquilamente seus dados. Ofereci algumas canetas e fui ajudar na venda das canecas. Estava lotado! Muitos compravam várias. Camila e outras 4 voluntárias davam conta mas estavam como em uma cantina em recreio de escola. Era até divertido assistir aquilo!
Conversei rapidamente com a fundadora. Estávamos ambos com a sensação de ação realizada com sucesso. Me despedi de alguns apoiadores que estavam mais próximos a mim naquele momento, alguns me pediram que os visitasse e anotei mentalmente isso. Era um sinal de que havia interesse e não era para perdermos isso. Agendaria com eles para a próxima semana, ligaria amanhã mesmo.
Ao sair do jantar, em direção a minha casa, percebi que havia sido um dia bastante produtivo e agradável, mas estava exausto. Havia conseguido a confirmação de 30 mil com o Antonio, estávamos avançando com a Fundação alemã, conheci a Josefina e combinei de visitarmos sua creche, além de reencontrar a secretária da minha escola, estávamos a caminho de lançar a nova newsletter da associação, uma porta se abria com Pedro Salinas e o evento tinha sido um sucesso. Que dia.
Ao mesmo tempo, sabia que era somente mais um dia, de tantos que tenho. Amanhã tem mais. Toda noite, antes de dormir, faço essa reflexão: “O que fiz hoje? Valeu a pena? Foi útil?” Toda noite penso se me alegra estar onde estou. Porque sei que o dia que eu não sentir mais prazer em fazer o que faço, o trabalho acabou. Devo procurar outra coisa. Que bom que continuo animado pelo trabalho com esses jovens. E é por eles que acordarei amanhã, para mais um dia de captador.